O lado obscuro da Unisa - Universidade Santo Amaro: Humilhações de boas-vindas e a cultura dos trotes.
TODOS OS NOMES DE ALUNOS E EX-ALUNOS RELATADOS NESTA REPORTAGEM SÃO FICTÍCIOS!
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O UOL realizou uma pesquisa investigativa para tentar esclarecer os acontecimentos envolvendo a Unisa - Universidade Santo Amaro. Em São Paulo, onde a universidade se encontra, há uma lei desde 1999 que proíbe trotes "sob coação, agressão física ou moral" nº 10.454/99. Quem pratica corre o risco de expulsão e de sofrer sanções penais e civis.
Foi criado uma lista de constrangimento relatados pelos calouros da Unisa, que envolvem tapas, socos, cuspes, humilhações públicas e por meios digitais, englobando práticas como realizar faxinas na casa dos veteranos, ajoelhar-se para ouvir xingamentos aos gritos, aceitar apelos de todos os tipos, até mesmo racista, regras de vestimentas e de circulação. E piora, onde meninas precisam usar coques e blusas sem decotes e os meninos usar cabelos raspados na máquina zero para serem "facilmente identificados".
A investigação ouviu estudantes e egressos do curso de medicina em condições totalmente anônimas para preservar suas integridades, além de ter tido acesso a mensagens em grupos na plataforma de mensagem Whatsapp e Instagram. O Meta se pronunciou sobre a queda dos perfis que denunciavam as violências, informando que "contas que violam as Diretrizes da Comunidade do Instagram podem e serão removidas".
Apesar das inúmeras tentativas de contato, a universidade não se pronunciou e a atlética, assim como o centro educacional, negou qualquer vínculo com os abusos, afirmando serem contra os trotes. A repercussão sobre o vídeo dos alunos correndo com os órgãos genitais à mostra trouxe perguntas difíceis de serem respondidas com clareza, por isso, a reportagem concentrou seus recursos em ir diretamente na fonte: os calouros.
Desde 2009 há registro de trotes violentos que ocorrem, não apenas dentro do espaço da universidade, como também na parte externa envolvendo festas, repúblicas, viagens a sítios no interior e jogos universitários. No início da matéria foi citada uma lista de trotes. Esta lista compõem um "manual" que é enviado por via telefônica para os novatos já no primeiro dia de aula.
Qual a história da Universidade Santo Amaro?
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Fundada em 1968, a instituição é uma das mais tradicionais unidades privadas de ensino médico no país, tendo como um dos seus alunos mais notáveis, o cardiologista Roberto Kalil, famoso por cuidar de políticos e celebridades como o ex-presidente Michel Temer, a ex-presidente Dilma Rousseff, Luiz Inácio Lula da Silva, Fernando Collor e José Sarney. Ele também foi responsável por trazer a técnica da imagem por ressonância magnética cardíaca para o Brasil. Assim como o médico Marco Aurélio Cunha, que acabou assumindo o cargo de deputado estadual por 5 anos na vaga de Jooji Hato.
Mas, a fama, engana. Apesar de todo o status quo adquirido pela instituição, as notas das últimas avaliações são medianas e, em 2019, o curso de medicina recebeu nota 3 em duas instâncias, uma no Enade - Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes e outra no IGC - Índice Geral de Cursos, que avalia a qualidade de ensino. Ambas utilizando parâmetros de 1 a 5, sendo a nota 5 a mais alta.
Mas, porque alguém participaria de algo assim?
Esta é a primeira pergunta feita após a apuração de alguns fatos. "Como permitir ou se permitir participar de tais atividades?". A promessa é que, caso você não participe dos trotes, não receberá indicações futuras para residência. No curso de medicina, após os anos de graduação, o estudante precisa realizar uma residência, onde será aplicado o conhecimento obtido durante o decorrer do curso. Para entrar na residência, o aluno precisa de uma indicação de alguém que já está formado e é nesse momento que entra as manipulações.
Segundo Bruna, que está no curso de medicina, "é a cultura do medo. É uma cultura completamente coercitiva, completamente abusiva e que te coloca numa posição de que se você falar, for contra ou não participar, acabou a sua vida".
Em 2011 a Unisa anunciou a proibição de "qualquer tipo de trote que cause constrangimento aos alunos", seguindo a resolução do Ministério Público e, em janeiro de 2022, lançou uma página chamada "Diga Não ao Trote", reforçando a mensagem da proibição e da importância de acolher.
A impunidade para os atos que vêm ocorrendo a anos na instituição se dá, segundo relatos de ex-alunos e alunos, ao fato de que muitos envolvidos são de famílias derivadas de médicos famosos. Pela facilidade de se envolver com atos ilícitos e saírem impunes, a maior parte dos veteranos são cada vez mais "criativos" nos trotes realizados nos calouros. André comentou que, "conhece pessoas que já tiveram que beber cuspe, comer catarro", enquanto um perfil criado no Instagram chamado Relatos Unisa compartilhou uma postagem que dizia: "veteranos simplesmente despejam um copo de cerveja na cabeça do calouro, que deve ficar quieto e não reclamar para não acontecer coisa pior".
Esses mesmos veteranos também são integrantes atletas que representam a faculdade em jogos ou são filiados à atlética. As informações são de que há conivência da parte diretória e presidencial, a Associação Atlética Acadêmica José Douglas Dallora. Em defesa, a atlética emitiu uma nota informando que, "a política é que ninguém pode dar trote. Não somos coniventes, somos totalmente contra", disse o presidente do grupo, Felipe Nunes em entrevista ao UOL.
As investigações tiveram acesso a um grupo que receberam as regras de como responder os líderes dos trotes, estudantes do sexto ano. Eles comentam que não podem apagar as mensagens ou "afrontar" os veteranos, sempre respondendo "ok" quando mandarem uma ordem e seguir o manual. Quem organiza os trotes, são os alunos do sexto ano, que recebem o aval dos veteranos e formados.
Bruna desabafou comentando que até o momento atual, há pessoas que ela encontra que não falam com ela. Ela explica que quem se recusa, acaba recebendo um apelido pejorativo de "pau no cu".
"Eu não me sinto parte de lá. Me sinto mal lá dentro e isso é uma questão que eu trato com medicamento e com terapia", diz Pedro e complementa, "a maioria das meninas da minha turma usa coque e não usam maquiagem e nenhum tipo de adereço por medo".
O advogado responsável pela Atlética, Cândido Neto afirmou que o grupo não obriga ninguém a agir conforme o que foi relatado e que o Atlética não tem como controlar se o Joãozinho vai raspar a cabeça da Maria e que, caso denunciado para o grupo, aí sim, será investigado.
As barbaridades continuam.
Um dos alunos comentou que uma pessoa foi apelidada de onça. Se um veterano perguntasse a essa pessoa seu nome, ele deveria responder com o apelido "onça" e passar a mão no órgão genital masculo de outro homem e explicar que é "chamado de onça por causa da pintada". O que muitos veriam apenas como uma brincadeira de mal gosto, apenas "uma zoação", se agrava criminalmente quando expandido para algo muito mais diligente. Como o que aconteceu a Haley, aluno negro que recebeu esse apelido em "homenagem" ao cometa Halley, onde os veteranos diziam que "um preto em medicina só de 50 em 50 anos", fazendo alusão à passagem períodica do cometa, de 75 anos.
Os alunos comentaram que, em jogos, se não souber cantar os hinos que contém frases machistas e termos de baixo calão como, por exemplo, "pegar as caipiras e comê-las no canto", é punido também. Outros calouros são obrigados a enviar fotos de pênis para pessoas que se envolvem em brigas com os veteranos, outros são obrigados a tomar a própria urina misturada com outras ou vômito em festas, como punição. Em todos os relatos coletados, os alunos reportam que o centro acadêmico não oferece qualquer suporte referente às denúncias.
Pedro comentou que "você precisa saber de tudo, todas as salas, os nomes delas, as pessoas que estão nelas, os times, tudo. Se o veterano chegar e você não souber hinos, cantos e músicas, eles vão te dar o 'come'... Te xigam, te chamam de burro e te humilham."
Em 2016, um estudante jogou uma "Gota", nome popular dado à LSD líquido no galão de água de um alojamento. A justificativa dada pelos organizadores dos trotes é que esta é uma forma de preparação para o período de residência. Em uma das mensagens recolhidas do Whatsapp diz "quem vocês acham que arrumam seus primeiros plantões, falam com chefes, arranjam carta de recomendação para residência?"
A reportagem então questionou, após a negativa do grupo, por que a maioria dos alunos responsabiliza a atlética pelos trotes abusivos. "Você está lidando com acadêmicos que são acadêmicos de medicina, quem entende de direito aqui sou eu. É muito mais fácil você ir em uma festa e pensar: quem é o patrocinador? É a atlética? Então isso é coisa da atlética, porque ela está no meio", justificou Neto, o advogado.
O UOL procurou presencialmente a diretoria do curso de medicina, mas foi informado que apenas seria atendido com hora marcada. Por email, a secretária do diretor informou que no dia 15 de dezembro ele estava de férias e retornaria em 17 de janeiro. A assessoria de imprensa não quis atender a reportagem e houve tentativas telefônicas, também ignoradas.
Na data marcada para a volta do diretor, novo email foi enviado, sem retorno. Em 19 de janeiro, uma ligação foi desligada quando o repórter se identificou e tentativas seguintes foram ignoradas. Houve ainda tentativas de contato telefônico, também ignoradas, com a coordenadora do curso, Cintia Leci Rodrigues, e com o diretor, Julio Cesar Massonetto, que visualizou a mensagem e, em seguida, bloqueou o repórter.
o problema é muito mais profundo do que apenas o que aconteceu dos rapazes correndo pela quadra de vólei. Os verdadeiros responsáveis pelos atos, aqueles que demandam as práticas criminosas, vexatórias, humilhantes há muitos anos, estes serão verdadeiramente punidos? Ou continuará sendo observado mais práticas dessas impunes?
Ana Carolina Pavan
Fontes: UOL